Direitos humanos e cultura escolar

Direitos humanos e cultura escolar

Obra organizada por Antonio Simplicio de Almeida Neto e Lucília Santos Siqueira busca discorrer sobre um projeto contra a resignação ao acaso e ao conservadorismo

Leia abaixo a Introdução do livro. O download do livro completo pode ser feito aqui.

 

Em tempos de ameaça aos direitos sociais e trabalhistas, de intolerância e violência contra a mulher, de homofobia e de racismo, de ondas de conservadorismo e de ameaças a direitos indígenas, de conclamas à ditadura militar, de fragmentação das demandas e das lutas sociais,falar em direitos humanos tornou-se um desatino. Tidos por inevitáveis e hegemônicos, os discursos do desarranjo nos poucos direitos sociais e das concepções privatistas fazem as vozes contrárias a esses modelos soarem anacrônicas.

Em tempos de produtividade escolar, currículos unificados, ranking de escolas, sistemas apostilados, sistemas de avaliação, gratificação por bônus e outros procedimentos que padronizam o ensino escolar, parece desvario propor atos criativos em educação. No ensino parece líquido e certo que a educação é um produto como qualquer outro e que sujeitos exteriores à escola é que devem determinar e aferir o que vai dentro da sala de aula: materiais didáticos, conteúdos, propostas pedagógicas, avaliação, fundamentos. É como se houvesse consenso acerca da incapacidade do professor para pensar, criar e organizar sua aula, selecionar conteúdos, elaborar projetos para as diferentes realidades do país, conceber materiais didáticos, escolher metodologias e abordagens adequadas, enfim, não se acredita que o professor seja capaz de fazer escolhas frente ao imprevisível e às precariedades do cotidiano escolar.

Com o recrudescimento da explícita violência contra Direitos Humanos elementares, imiscuída em discursos cínicos e simulacros de retórica pedagógica, os parâmetros éticos se dissolvem, parece não haver finalidade ou lado, orientação ou sentido.

Na busca por referências, alguns questionamentos são relevantes para o combate a esse ciclo que não cessa; questionamentos que, na educação escolar, figuram como ainda mais necessários para tecer projetos de futuro: Ainda faz sentido falar em direitos humanos? É pertinente educar nessa perspectiva? Professores devem ser capazes de criar e projetar suas aulas? A complexa realidade social do Brasil deve ser considerada quando se pensa projetos em direitos humanos? Ainda é possível pretender formar alunos críticos, que conhecem seus direitos e respeitam os Direitos Humanos? Ou, conforme apregoa o movimento autodenominado Escola Sem Partido, isso seria doutrinação ideológica? Sujeitos escolares como pais, alunos, funcionários e professores devem participar das decisões da escola? Conteúdos como relações de gênero devem compor o currículo escolar ou se trata de ideologia? História e cultura africana, afro-brasileira e indígena são relevantes na composição do currículo? Interesses públicos e privados na educação devem ou podem caminhar juntos?Quem deve definir o currículo escolar? Quais interesses e elementos estão implicados no currículo?Direitos Humanos devem compor o currículo escolar?

Trata-se, a nosso ver, de tomar para si a possibilidade de projetar ou seguro desígnio decidido por outrem; como propôs Argan¹ ao discutir arte e arquitetura: “contra a exploração do homem pelo homem, (…) contra a inércia do hábito e do costume, contra os tabus e a superstição, contra a agressão dos violentos, (…) contra a pressão de um passado imodificável, (…) contra todo tipo e modo de conservadorismo” (2004, p. 53).

Ao professor, cumpre projetar contra a resignação ao acaso e ao conservadorismo. Tal postura exige disposição para se assenhorar do destino e projetar contra as precariedades da realidade em que atua; contra as “novas” tendências da educação que padronizam o ensino; contra a lógica do consumo aplicada à educação; contra as práticas inócuas que surgem do conformismo.

Desde o final do século passado temos chegado mais perto da universalização do acesso à Educação Básica. Tal meta exige pensarmos na formação de professores e na formação continuada de professores em grande escala. O problema, então, consiste em promover formação para um grande número de docentes sem que isso represente uma padronização, sem que se torne um instrumento de treinamento para fazer rodar melhor uma engrenagem que não se compromete com os direitos dos cidadãos.

O curso de Especialização “Educação em Direitos Humanos” (EDH) desenvolvido pela UNIFESP no âmbito do Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica (COMFOR),conforme proposta apresentada pela SECADI-MEC, do qual resultou essa publicação, foi criado para professores da Educação Básica da Prefeitura Municipal de São Paulo² em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC-SP).

Contando com a estrutura de cinco CEUs – que se tornaram nossos polos para os encontros presenciais – e com os recursos tecnológicos da UAB-Universidade Aberta do Brasil, pudemos manter entre os anos de 2015 e 2016 um Curso de Especialização a distância com encontros presenciais regulares e com uma forma de trabalhar que buscava acolher as especificidades dos diferentes sujeitos envolvidos. Assim, apesar de lidar com centenas de professores-cursistas e de comportar uma equipe de dezenas de pessoas, entre tutores presenciais, tutores a distância, docentes elaboradores de conteúdo – os autores desta publicação -, coordenadores de polo, tutores e orientadores para os TCCs, coordenadores de tutoria e coordenação de curso, teimamos em não nos perder nas questões burocráticas ou de gestão, insistimos em discutir os fundamentos da leitura e da pesquisa, em tratar das características da linguagem científica, em propor e ouvir reflexões de teor mais crítico, em avaliar com cuidado e com proposições os textos produzidos pelos cursistas ao longo do ano, atentando para as histórias que nos chegavam: de cada escola, de cada material ou sala de aula, de cada coordenação pedagógica ou direção, dos arquivos das instituições de ensino ou de outros locais onde os cursistas atuavam. Nosso propósito estava centrado no fato de que os cursistas incorporassem as leituras para que pudessem, a partir delas, examinar a realidade escolar onde se inseriam.

Tudo isso só podia resultar consistente se fosse feito no nível individual, no trato de cada cursista. Dessa maneira, a equipe tinha que se reunir de quando em quando, explicitar as dificuldades mais gritantes e as mais recorrentes, trocar sugestões e os casos bem resolvidos e, então, retornar aos cursistas pedindo que se dedicassem ainda mais, que se propusessem a uma etapa ainda mais trabalhosa – um dos grandes entraves para os cursos de formação continuada é a já existente carga de trabalho dos professores, que os impede de dispor de um tempo de qualidade para ler e para pesquisar. Mesmo com todas as vicissitudes – lembremos especialmente dos dados permanentemente endereçados a Brasília –, chegamos ao final deste curso de Educação em Direitos Humanos com alguns depoimentos exitosos de cursistas e com inúmeros TCCs que ultrapassaram a expectativa da equipe de formadores.

Para esses trabalhos finais, o curso de EDH adotou por perspectiva a possibilidade de que os cursistas elaborassem projetos de intervenção na realidade escolar ou em outras instituições de atuação, a partir de pesquisa sobre a cultura escolar e a forma escolar, como apresentamos no capítulo 1. Para tal procedimento, consideramos que as instituições escolares possuem características específicas – que envolvem diferentes sujeitos, códigos, organização de espaço e tempo, relações de poder, discursos etc. – que não podem ser desconsideradas quando se propõem projetos de EDH, sob o risco de produzirmos simulacros para atender às exigências curriculares e burocráticas, como apontado nos capítulos 1 e 4.

A construção de uma cultura de Direitos Humanos na escola, preconizada por esse curso, tema do capítulo 3, implica considerar essa instituição social em suas contradições, que teve e tem papel central em processos de exclusão e, não obstante, é espaço privilegiado para o aprendizado, prática e difusão dos referidos direitos, assunto do capítulo 5. Nesse aprendizado, observando os conceitos de cultura escolar e forma escolar, centrais nesse curso, faz-se necessário atentar para a relevância dos materiais didáticos (livros didáticos, vídeos, fotos, kits pedagógicos, grafites, produção de vídeo e programa de rádio) eles próprios considerados currículos, veiculando preconceitos e estereótipos ou servindo à desconstrução dos mesmos, como verificamos no capítulo 6.

Contudo, sob o risco da banalização dos Direitos Humanos proposta por seus detratores, que atacam esse tema com toda sorte de deturpações e falácias, faz-se necessário discutirmos o rigor das teorias que embasam essa discussão, assim como compreendermos seus fundamentos filosóficos e marcos regulatórios entendidos em sua historicidade, o que é abordado no capítulo 1.

Todo esse horizonte de intenção, amplo como deve ser quando se trabalha na perspectiva de direitos humanos, não nos levaria a um bom lugar se não fosse o trabalho de cada tutor à distância, de cada tutor presencial, dos autores do material didático de cada módulo do curso, daqueles que atuaram na secretaria do COMFOR cuidando da documentação de tanta gente, dos tutores e docentes que orientaram os TCCs, daqueles que manejavam a tecnologia a fim de se adequar ao que julgávamos melhor para o andamento do curso – fosse na qualidade visual do material, fosse na capacitação da equipe para lidar com os recursos tecnológicos, fosse na maneira de armazenar os resultados e notas obtidos pelos cursistas. Junto à equipe de Coordenação, diariamente em contato com os tutores e cursistas, estiveram Elvis Roberto Lima da Silva e Fabíola Matte Bergamin; Fabrício Gobetti Leonardi foi o responsável pela coordenação das tutorias e por manter a plataforma virtual em acordo com o que se fazia na prática. Agradecemos muito o trabalho de cada uma dessas pessoas; sabemos que o esforço foi grande. E o resultado imensurável.

¹ ARGAN, Giulio Carlo. Projeto     e destino.     SP: Ática, 2004.

² Conforme edital houve participação de até 25% de inscritos por     demanda social: Organizações Não-Governamentais (ONGs),     Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Escolas Privadas e/ou Conveniadas, Fundações, Igrejas, Conselhos,     Comitês, Fóruns e/ou Movimentos Sociais.

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